a. limpa com fervor os armários da cozinha...
vidas ditas normais. invejo essa força que leva as pessoas normais a cumprir as tarefas do dia-a-dia. porque não a tenho. é Domingo. e daqui só vejo um casal que parece não comunicar, com crianças pelo meio. marcou-me fortemente uma discussão no aniversário da bebé. (impossível ser indiferente. era verão e todas as janelas estavam escancaradas). o ímpeto de mãe que leva o filho para o quarto, protegido, entre braços, logo a seguir ao canto forçado, do soprar da vela e da gritaria. desde esse dia vejo b. como o homem satélite, mudo, quedo, que pouco mais faz que preencher um espaço e fumar cigarros à janela. nunca um gesto de carinho atravessou aquelas janelas. habituei-me a ver a. como uma sofredora, e b. como um apático. talvez eu esteja completamente errada. talvez só veja o que quero ver. mas hoje, Domingo, enquanto me perdia pelos meus caminhos mentais à procura de um sinal com um sentido, foi a., fervorosa, silenciosa, que eu vi, procurando/construindo o seu caminho, limpando fervorosamente os armários da cozinha. que pensaria ela? seria eu mais feliz se estivesse no seu lugar?
vidas ditas normais. invejo essa força que leva as pessoas normais a cumprir as tarefas do dia-a-dia. porque não a tenho. é Domingo. e daqui só vejo um casal que parece não comunicar, com crianças pelo meio. marcou-me fortemente uma discussão no aniversário da bebé. (impossível ser indiferente. era verão e todas as janelas estavam escancaradas). o ímpeto de mãe que leva o filho para o quarto, protegido, entre braços, logo a seguir ao canto forçado, do soprar da vela e da gritaria. desde esse dia vejo b. como o homem satélite, mudo, quedo, que pouco mais faz que preencher um espaço e fumar cigarros à janela. nunca um gesto de carinho atravessou aquelas janelas. habituei-me a ver a. como uma sofredora, e b. como um apático. talvez eu esteja completamente errada. talvez só veja o que quero ver. mas hoje, Domingo, enquanto me perdia pelos meus caminhos mentais à procura de um sinal com um sentido, foi a., fervorosa, silenciosa, que eu vi, procurando/construindo o seu caminho, limpando fervorosamente os armários da cozinha. que pensaria ela? seria eu mais feliz se estivesse no seu lugar?
recordo mais uma vez antónio lobo antunes exortando crocodilos:
acordei mas não me digam nada que até às onze da manhã tenho um feitio de cão. rebolo pela casa de olhos fechados, embatendo nos móveis a afastar o sol e a maldizer o mundo, o sol, claro, finge que se vai embora e regressa de seguida na teimosia dos bichos, pegajoso, insuportável, amigo, não preciso de amigos de modo que o sacudo
- larga-me
ou lhe aponto a janela
-rua
e a casa escurece, abro a torneira para molhar a cara e a água dói na pele, rodo o comutador da cozinha e a luz enche-me as pestanas de ácido, ligo o bico do fogão e o gás cospe-me calores azedos no nariz, o sol, que não desiste, passeia no lava-loiças roçando-me, limpo-o com o esfregão das panelas e o malandro escapa para o frigorífico a rir-se, brilha na jarra em cima do naperon, lambe-me o queixo, esconde-se nos pêssegos da fruteira, reaparece, engraçadissimo julga ele, nos azulejos do chão, levanto o pé devagarinho, toda cautelas, toda simulações, para o esmagar e sumiu-se, enrolou-se amuado nas cortinas da sala
-passa bem
apetece-me dormir, tornar ao espaço morno, côncavo, agradável que sou, ao sonho óptimo, a cores
(de certeza que não se repete nunca mais)
em que dava um pulito e voava, descia do primeiro andar à cave, rente aos degraus, num bailado de plátano, erguia-me ao menor vento numa graça que nunca possuí, pairava, espreguiçava-me, tocava ao de leve no tecto, dava cambalhotas sem me despentear, o sol, esquecido do amúo, equilibrou-se na maçaneta da copa, eu a cortar o ângulo do pacote de leite sem poder abrir os olhos e bater-lhe...
(imagem roubada do final de 'Don't come knocking', Wim Wenders)