dezembro 31, 2007

Diário da vida dos outros (#1)

a. limpa com fervor os armários da cozinha...

vidas ditas normais. invejo essa força que leva as pessoas normais a cumprir as tarefas do dia-a-dia. porque não a tenho. é Domingo. e daqui só vejo um casal que parece não comunicar, com crianças pelo meio. marcou-me fortemente uma discussão no aniversário da bebé. (impossível ser indiferente. era verão e todas as janelas estavam escancaradas). o ímpeto de mãe que leva o filho para o quarto, protegido, entre braços, logo a seguir ao canto forçado, do soprar da vela e da gritaria. desde esse dia vejo b. como o homem satélite, mudo, quedo, que pouco mais faz que preencher um espaço e fumar cigarros à janela. nunca um gesto de carinho atravessou aquelas janelas. habituei-me a ver a. como uma sofredora, e b. como um apático. talvez eu esteja completamente errada. talvez só veja o que quero ver. mas hoje, Domingo, enquanto me perdia pelos meus caminhos mentais à procura de um sinal com um sentido, foi a., fervorosa, silenciosa, que eu vi, procurando/construindo o seu caminho, limpando fervorosamente os armários da cozinha. que pensaria ela? seria eu mais feliz se estivesse no seu lugar?


recordo mais uma vez antónio lobo antunes exortando crocodilos:
acordei mas não me digam nada que até às onze da manhã tenho um feitio de cão. rebolo pela casa de olhos fechados, embatendo nos móveis a afastar o sol e a maldizer o mundo, o sol, claro, finge que se vai embora e regressa de seguida na teimosia dos bichos, pegajoso, insuportável, amigo, não preciso de amigos de modo que o sacudo 
- larga-me 
ou lhe aponto a janela 
-rua 
e a casa escurece, abro a torneira para molhar a cara e a água dói na pele, rodo o comutador da cozinha e a luz enche-me as pestanas de ácido, ligo o bico do fogão e o gás cospe-me calores azedos no nariz, o sol, que não desiste, passeia no lava-loiças roçando-me, limpo-o com o esfregão das panelas e o malandro escapa para o frigorífico a rir-se, brilha na jarra em cima do naperon, lambe-me o queixo, esconde-se nos pêssegos da fruteira, reaparece, engraçadissimo julga ele, nos azulejos do chão, levanto o pé devagarinho, toda cautelas, toda simulações, para o esmagar e sumiu-se, enrolou-se amuado nas cortinas da sala 
-passa bem 
apetece-me dormir, tornar ao espaço morno, côncavo, agradável que sou, ao sonho óptimo, a cores 
(de certeza que não se repete nunca mais) 
em que dava um pulito e voava, descia do primeiro andar à cave, rente aos degraus, num bailado de plátano, erguia-me ao menor vento numa graça que nunca possuí, pairava, espreguiçava-me, tocava ao de leve no tecto, dava cambalhotas sem me despentear, o sol, esquecido do amúo, equilibrou-se na maçaneta da copa, eu a cortar o ângulo do pacote de leite sem poder abrir os olhos e bater-lhe...


(imagem roubada do final de 'Don't come knocking', Wim Wenders)