[monólogo que surfa nas ondas de Novas Cartas Portuguesas]
[Edições Cotovia, 1990]
(...)
Pensava portanto nela, ontem na cozinha, e percebia enfim que a maior beleza é sempre silenciosa, e que faltaria sempre à minha vida - como sem dúvida à tua - uma parte de verdadeiro mistério. Por isso, matar-te constituía uma espécie de cerimónia através da qual, imolando-te, obtinha para sempre silêncio e beleza. Pensava por outro lado que esse gesto permaneceria como o único acto de fé de toda a minha existência. Esta perspectiva serenou-me e comecei a acreditar plenamente na simples suposição de que tinhas cometido um crime tal que eu me devia vingar; e que essa vingança consistiria no teu assassinato.
(...)
Sabes, não vale a pena olhares-me dessa maneira. Aliás que poderias tu ver? Não há nada para ver aqui, a não ser um pouco de espaço inerte e frio.
Eu própria, sabe-lo bem, não sou senão uma colecção de palavras e de ruídos. De saia que se amarrota e de cólera que se retém. De dor também; de ventre, e de cabeças esmigalhadas.
Sentes como tudo isso é transparente? Como tudo isso pode subitamente pôr-se a oscilar no ar como penugem? Alguma vez ouviste o mar numa concha? Nada mais do que o ruído do teu próprio ouvido e do que tu queres ouvir.
Eu própria não sou senão um pouco de ar cativo de um labirinto abstracto. Um pouco de ar, compreendes? Nem louca, nem só, estás a ver; mas simplesmente ---
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