a camisola verde pescoço de tartaruga manga quase cava já tem um buraco. buraco laboriosamente tapado ao qual não escapa a aparência de minúscula potra. denuncia a passagem do tempo, o desgaste, o tratamento agressivo ou - visão alternativa - o entusiasmo brincalhão de uma gata. na tua memória será uma mancha com contornos. no meu corpo, aconchego de toque algodão no pescoço e potra a roçagar o abdómen. nada mais. desenhaste-nos numa página amarela, linhas cruzadas convictamente desenhadas – ou, talvez, linhas paralelas torcidas à proximidade e divergidas no contacto... uma pequena pedra no sapato, pequenos buracos no tecido, nódoas a marcar o correr do tempo. somos os mesmos. intenção, ímpeto e palavras escritas na sombra dos dias. sem toque. sem sentido. o verde a ficar russo. a potra a rebentar. e as palavras... [a costela alentejana a lembrar A Oferta do Destino, de Florbela Espanca]
entrando numa pequena loja de arte tradicional índia em Santa Fé, a Warrior Maiden Art, não resisti a adquirir uma série de amuletos índios Hopi. diz-se que estas pedras curandeiras devem ser fechadas na mão, convictamente, e que desta forma adquirimos as suas energias. cada elemento tem o seu simbolismo muito próprio. aves, normalmente associadas a energia criativa. o urso, claro, espírito protector. outros elementos são por vezes mais abstractos: um simples seixo, uma seta... mas o que importa é a energia que deles se transmite. recordações de viagem que ofereci com gosto, mas com alguma dificuldade de perder. fiquei com uma (ou duas!) - este urso com pássaro a galope tem menos de 2 cm de comprimento!
diz-se que estes amuletos devem colocar-se numa pequena saqueta, juntamente com pequenos objectos que nos são importantes - o medicine bag - e que nos devemos fazer acompanhar por ele. não é um amuleto de sorte, mas fonte de poderes sobrenaturais que ajudam na caminhada.
os índios Hopi, originários do nordeste do estado de Arizona/USA, são ricos em amuletos e simbologia. o nome Hopi, por si, significa bem, calmo, sábio. designam-se a si próprios como Hopitu - the peaceable people. há claramente aqui uma afinidade muito grande com as minhas origens.
*ainda à boleia de City Middle, Alligator, The National
pequenas amostras deste livro/peça de teatro/filme que me revisita frequentemente com o passar dos anos. ainda que tenha sido publicada pela primeira vez em 55, e adaptada ao cinema em 58 (magníficos desempenhos de Paul Newman e Elizabeth Taylor), há aspectos das expectativas e das dinâmicas de vida familiar que ainda são actuais. sobre tudo isto a tentativa de retrato não menos importante do que somos por dentro, do que (não) ambicionamos, e das marcas que vão ficando na alma e no coração, marcas de perdas e tentativas de conquista, dos outros e de nós próprios. livro/peça de teatro/filme que recomendarei sempre.
PERSON-TO-PERSON
...
It is a lonely idea, a lonely condition, so terrifying to think of that we usually don't. And so we talk to each other, call each other, call each other short and long distance across land and sea, clasp hands with each other at meeting and at parting, fight each other and even destroy each other because of this always somewhat thwarted effort to break through walls to each other. As a character in a play once said, 'We're all of us sentenced to solitary confinement inside our own skins'. Personal lyricism is the outcry of prisoner to prisoner from the cell in solitary where each is confined for the duration of his life. ...
[prefácio a Cat on a Hot Tin Roof, de Tennessee Williams, pelo autor]
CAT ON A HOT TIN ROOF Act Two
...
Big Daddy: ... What makes you so restless? Have you got ants in your britches? Brick: Yes, sir... Big Daddy: Why? Brick: - Something - hasn't - happened.... Big Daddy: Yeah? What is that! Brick(sadly): - the click.... Big Daddy: Did you say click? Brick: Yes, click. Big Daddy: What click? Brick: A click that I get in my head that makes me peaceful. Big Daddy: I sure in hell don't know what you're talking about, but it disturbs me. Brick: It's just a mechanical thing. Big Daddy: What is a mechanical thing? Brick: This click that I get in my head that makes me peaceful. I got to drink till I get it. It's just a mechanical thing, something like a - like a - like a - Big Daddy: Like a - Brick: Switch clicking off in my head, turning the hot light off and the cool night on and - [he looks up, smiling sadly.] - all of a sudden there's - peace! ... [excerto de Cat on a Hot Tin Roof, de Tennessee Williams]
The National estiveram no Manta, uma noite de verão, sexta feira de quase lua cheia. o calor a destilar as ideias e os líquidos do corpo. da minha lista de pedidos faltaram estas weird memories de City Middle:
... You were parking your car, you said, I'm overwhelmed You were thinking out loud, you said, I'm overwhelmed You said, I think I'm like Tennessee Williams I wait for the click I wait, but it doesn't kick in ...
ainda assim, deu para sacar do meu par de luvas verdes, encorpar a postura enclausurada e contraída de Matt Berninger, soltar-me, ganhando balanço para o Secret Meeting, e finalmente dissolver-me nas imagens de alucinação de um certo verão.
escolho-te assim, meio desfocada, como imagem desta nossa relação quase amor-ódio de provocadora. entre o "vais p'á est(r)ada!" e o "kaaaah! vem brincar comigo!". acho que somos mesmo muito parecidas. e pisco-te o olho.
ainda não sabes, mas amanhã iremos as duas para a estrada!
alguns já me terão visto um sorriso acompanhado de um curto comentário, sempre que pego na lata azul e preparo um cigarro. é do Pepe que me lembro: penso no seu sorriso comedido e malandro, sempre que me "vê" enrolar um Amsterdamer. dominante, silencioso, paciente, analítico, minucioso, curioso, aparentemente distante, disfarçando sorrisos ou afectos, mas muito ligado a tudo e a todos. é assim que o lembro.
à tua maneira. nos pequenos gestos, nos momentos mais inesperados e previsivelmente insignificantes, era aí que muitas vezes te revelavas. como no último dia que te vi, a tua mão no meu espelho retrovisor acenando o adeus, gesto que te era pouco comum, como se adivinhasses o que viria duas semanas depois.
na sexta feira chamei-te e estiveste comigo outra vez. passeámos pelos corredores do Mosteiro de Tibães. assim o desejei. invocação pelo cheiro da madeira aparentemente virgem, pelo som dos passos nos longos corredores ou nas acolhedoras celas. apreciámos a minúcia dos tectos, a complexidade da recuperação, a beleza que renasce neste complexo trabalho de restauro. não foste tu que lá me levaste, mas inesperadamente tornaste-te a presença mais importante, transcendendo, e simultaneamente assinando, com um invisível formão com um dos teus cabos de madeira, as actividades e os contactos agendados para o fim de tarde.
o dia foi longo e teve muitos kilómetros. porto - vigo - braga - tibães - porto. 7h30 - 24h. foi preciso chegar a casa para recordar com um sorriso gigante que era o teu dia.
parabéns avô pepe!
[não senti a coragem ou o impulso, mas tivesse eu puxado da máquina fotográfica a pesar no fundo do saco e ter-te-ia certamente apanhado no campo de visão! vou ter mesmo de lá voltar.]
o título não é reflexo da minha percepção do espectáculo. muito pelo contrário, pode ser reflexo da incapacidade da escrita transmitir certas vibrações da Palavra e de como me ficaram gravadas. vibrações de Vera Mantero que, finalmente, consegui ver ao vivo.
[1 de 3 alheamentos, no dia 12 de Julho, Centro Cultural Vila Flor/Guimarães:]
uma misteriosa Coisa, disse o E. E. Cummings
Concepção e interpretação Vera Mantero Caracterização Alda Salavisa (desenho original de Carlota Lagido) Adereços Teresa Montalvão Desenho de luz João Paulo Xavier Adaptação e operação de luzes Bruno Gaspar Produção executiva Forum Dança (1996), O Rumo do Fumo Apoio Casa da Juventude de Almada, Re.al / Amascultura Produção Culturgest, Lisboa, 1996, "Homenagem a Josephine Baker" Duração 20 min
o solo é fantástico. tão poucos elementos mas tão fortes. o rosto que se transfigura continuamente, sob a acção da luz, das palavras, da imagem, do movimento. o corpo que se metamorfoseia na luz, na nudez, em contínuo movimento que parece ser conduzido pelas mãos, quase quase como se existissem cordas de marionetas presas nalguns dedos. cordas manuseadas por uma entidade omnipresente, jogando com o corpo, pesado mas fluído, suspenso mas em desequilíbrio. entidade interior, cuja força vem da alma para as palavras.
Pensava a regressada Josephine por volta de meados de Agosto de 1995: "Depois de ouvir um discurso na rádio do presidente português Mário Soares (não me lembro se no 25 de abril se no 10 de junho), em que ele falava do mundo neste momento com qualquer coisa que se deve poder chamar alguma elevação de espírito (que é uma coisa que infelizmente surpreende imenso por estes dias num político, e que se ouve com imenso agrado), associei esse discurso ao Glenn Gould e às suas Variações Goldberg (as da maturidade), ao Kazuo Ohno, e a uma expressão que me surgiu na cabeça, "grandeza de alma". O meu grande desejo de uma vitória do espírito, acho que é o que esta associação revela. É uma coisa que eu gostava de encontrar ou de criar, um amplo território em que a riqueza de espírito reinasse. (Será educação massiva a resposta?). Este espírito de que falo não tem vontade nenhuma de anular o corpo, nem vergonha nenhuma do seu desejo e do seu sexo, o que este espírito de que falo tem vontade de anular é a boçalidade, a assustadora burrice, a profunda ignorância, a pobreza de horizontes, o materialismo, etc. etc. (infelizmente a lista tem ar de ser longa...). Seria uma nova dicotomia, não a estafada "corpo-espírito" (e vazia de sentido, francamente!), mas a infelizmente actual “burrice-espírito” (ou talvez “boçalidade-espírito”). Ou todas as possíveis variantes (era bom decidir-me por uma...)".
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e já que Josephine Baker regressou por uns minutos, aqui ficam alguns registos de outras aparições:
na lista de tarefas três items para o dia. a meio da tarde ainda nem sequer tinha tocado no primeiro. tratava de fogos cruzados, em paralelo, desde o início da manhã. ainda assim, havia quem batesse à porta e não aceitasse uma justificação mais que justificada para o Não! e insistisse em forçar não sei quantos Sim!s. NÃO! as horas ainda tem 60mins! não 180, mas 60. depois a conversa enrola e enrola. tenta justificar-se aquilo que não tem justificação para parecer menos mal. a filosofia é "quando se pede a alguém a resposta obtida tem de ser SIM, mas se me pedirem a mim, digo NÃO (mas disfarço que é quase sim)". pode parecer contraditório. mas não é. estou cansada de ouvir "não tenho tempo!" e ter toda a gente a exigir-me ou a roubar indirectamente do meu. cansaço de apagar fogos. não sou bombeiro.
hoje é um daqueles dias de entrega silenciosa. subir pesarosamente todos os degraus, talvez em desequilíbrio, ou lentamente evitando o ofegante. até ao topo. sentir a porta que se abre, uma respiração escondida, e uma entrega incondicional e silenciosa a um abraço. longo. e nele magicamente esquecer tudo o que não tem importância nenhuma. até surgir o sorriso perdido do rosto. em silêncio. melhor, sem palavras sonoras.
[alheamento do dia: "curso de silêncio", por Vera Mantero e Miguel Gonçalves Mendes, tendo por base textos de Maria Gabriela Llansol; CCVF, Guimarães]
o pressentimento era mesmo muito forte!!!! mas quis o destino que regressasse. deve haver por aqui uma missão. falta tropeçar nela. isso, ou tudo é simplesmente mera fantasia.
corre a dor pelos nervos do corpo correndo frenético pelos dias contados a dedos deslizando suaves pela pele em arrepio eléctrico, veloz, reflexo emoção fulminante pressentimento aéreo
correr os dias fulminantes sobre os nervos arrepiados dos dedos pressentimento suave. a dor na pele do corpo